A noticia era oficial. Já havia treinador.
Parti assim para a minha última sessão documental. O filme em questão era "Diário da Bósnia" de Joaquim Sapinho, obra que documenta as viagens do realizador à Bósnia no período posterior ao da guerra naquela ex-república jugoslava, e que se apresenta como uma longa reflexão do autor sobre esse conflito, sobre as suas consequências, as suas memórias.
O maior problema deste filme é precisamente esse carácter reflexivo que a obra assume. É que para se aventurar numa obra deste tipo convém ter algo de interessante para dizer. E Sapinho claramente não tem.
Nesta sua estreia no documentário, Sapinho opta por ignorar quase completamente o que as pessoas que filma lhe/nos poderiam transmitir, optando por tentar transmitir-nos, em vez, as impressões que ele retirou daquilo que viu, ou, deduz-se, daquilo que sentiu. Mas o problema é que nunca consegue fugir da pura banalidade (e não deixa de ser sintomático que as poucas frases interessantes que aparecem no documentário estão entre as poucas que não lhe pertencem).
Tem que se lhe dar o mérito de, no entanto, ter arriscado uma empresa deste género, de não ter tomado a opção mais fácil limitando-se a um simples filme-reportagem sobre a situação extrema com que se deparou. E reconhecer que não é fácil levar um empreendimento deste a bom porto.
E é preciso também dizer que, no que à apreciação da obra diz respeito, Sapinho teve algum azar com o timing da sua estreia. É que ainda está muito presente na memória o magistral "A Nossa Música" de Jean Luc Godard, e é impossível ver este documentário sem nos lembrarmos do que Godard conseguiu fazer a partir de premissas semelhantes. (E isso poderá levar a uma ainda maior injustiça na apreciação da obra de Sapinho, porque Godard é demasiado grande, e estabelecer uma comparação entre os dois, assente no simples facto de ambos serem realizadores de profissão é um pouco, sei lá, como comparar o meu futebol com o do Zidane só porque também jogo futebol uma vez por semana, com os meus colegas de trabalho).
Mas isto tudo para dizer que não se trata de um filme mau. Está de facto repleto de bons planos, tem algumas boas sequências, em momentos em que Sapinho (e desculpem a maldade) está calado e nos poupa das suas reflexões, mostrando, por exemplo, um bom domínio na montagem. No entanto, e é também preciso dizê-lo, não consegue que o filme seja mais do que um conjunto de quadros, não conseguindo nunca dar ao filme uma sensação de sequência, de unidade, não nos transportando nunca para aquela realidade que nos mostra.
Acima de tudo, deste documentário fica a sensação de que este foi um projecto demasiado ambicioso para a arte de Sapinho. Pergunto-me o que poderia ser este filme se em vez de a Sapinho, o ICAM tivesse decidido pagar as viagens à Bósnia a Pedro Costa. Mas Costa é um caso único e, de qualquer maneira, por esta altura devia andar pelo bairro da Fontainhas a fazer algumas das obras mais importantes do cinema contemporâneo português.
O Festival para mim acabou assim. Não acabou em grande, de facto, mas também não acabou em miséria. Foi um pouco como a estreia do novo treinador, no Domingo seguinte. É isso. O festival para mim acabou num empate.
Entre o ir e o voltar à Culturgest falhei uns tantos filmes. Resumindo, o treinador já não o era, e o presidente, dizia-se, podia deixar de o ser.
Quanto aos documentários, voltei para uma saga de quase 3 horas sobre a emigração magrebina para França, "Memoires d'Immigrés" de Yamina Benguigui. Usando como elemento base de análise o núcleo familiar imigrante, na verdade não se tratava bem de um documentário mas de três, cada um concentrando-se num elemento diferente desse núcleo, o homem, a mulher/mãe e os filhos, fazendo-se cada um corresponder a uma fase diferente do processo histórico da imigração magrebina para França (e dos processos de imigração em geral, afinal): a primeira vaga de imigração, o reagrupamento familiar e o surgimento das segundas geração de imigrantes (por muito discutível que seja este termo) nascidas nos países de acolhimento.
Funcionando como um todo, é uma obra de fundo que compõem um quadro bastante completo do fenómeno em causa, permitindo um enquadramento histórico bastante completo, dedicando-se a aspectos da emigração que muitas vezes ficam esquecidos, (o papel da mulher na emigração, por exemplo, raramente é alvo da atenção devida), acabando no entanto por denotar um pouco os anos que já passaram desde a sua conclusão (trata-se de uma obra de 1999) no último episódio dedicado às segundas gerações, embora seja refrescante ver o tema analisado sem o ruído do 11 de Setembro por detrás (hoje em dia é impossível, por muito injusto que seja, deparar-se com um documento sobre as segundas gerações muçulmanas na Europa sem que a questão do fundamentalismo islâmico venha à baila) e acabe por funcionar como um interessante retrato de grupo de um tempo que (apesar de recente) já não existe.
Ainda assim um documentário, no seu todo, importante e actual, tendo em conta os dias que vivemos.
Depois veio "Before the Flood" de Yan Yu e Li Yifan. Épico é a primeira palavra que vem à cabeça para falar deste documentário, que acompanha o processo de desalojamento da cidade chinesa de Fengjie, uma das cidades submersas pela monumental barragem das Três Gargantas (monumental é outra definição que também fica bem a este filme). Utilizando um registo próximo do usual na 6ª Geração chinesa (perante este filme é impossível não nos vir à memória "Tiexi District" de Wang Bing, mas também não será descabido falar, por exemplo, de um Jia Zhang-Ke) utilização de câmara digital, planos longos que deixam a acção correr, completa ausência de voz off, este documentário consegue transportar-nos literalmente para aquela espaço. E permite-nos, acima de tudo, acompanhar (viver?) um processo de uma dimensão absolutamente esmagadora para a nossa realidade, fora de quaisquer parâmetros que possam ser por nós estabelecidos ou mesmo conceptualizados (basta recordar o processo de realojamento da Aldeia da Luz, que foi de facto um empreendimento grande, e comparar com o que nos é mostrado neste documentário para chegar à conclusão... que não é sequer comparável).
Majestoso (e com esta vão três definições, qualquer uma delas perfeitamente adaptável ao documentário em causa).
Entretanto, e porque o mundo não ficou parado, as novidades continuavam a chegar. O presidente lá acabou por sair, mas deixou um substituto no seu lugar (resultado talvez das suas origens nobres, por estes lados prefere-se a sucessão mais ou menos dinástica à eleição popular, e tendo em conta a escolhas feitas das últimas vezes que foram dadas opções de escolha, não me parece um processo nada mau, bem pelo contrário), do treinador novo é que não havia notícia (bem, haviam capas de jornais mas essas eram tão más que o melhor era nem sequer olhar).
Mas voltando de novo ao documental, foi a vez de uma sessão dupla, que agrupou duas obras de estreia. "Urgences, les Nuits des Villes" de Pierre Maillis-Laval e "Documento Boxe" de Miguel Vasconcelos, o primeiro acompanhando equipas de emergência médica nas noites de uma cidade francesa, o segundo debruçando-se sobre o mundo do boxe profissional português.
São primeiras obras, e isso nota-se num ou noutro pormenor, mas qualquer um deles aguenta-se bastante bem. Talvez porque seja uma realidade que já vimos tantas vezes ficcionada, a acção das urgências hospitalares retratada em "Urgences..." fica a saber a pouco e acaba por cansar a partir de uma certa altura. Quanto a "Documento Boxe" tem como base um conjunto de personagens que o sustenta bem e lhe permite manter um ritmo contínuo do princípio ao fim.
Poder-se-á dizer que, neste caso, o documentarismo português bateu por pontos (mas não por KO) o francês.
Seguiu-se outro momento alto do Doc. "Avenge But One of My Eyes" de Avi Mograbi.
Documentário israelita, centrado no conflito israelo-palestiniano, apresenta-o numa perspectiva extremamente original, contrapondo alguns dos mitos da luta judaica pela liberdade com a resistência palestiniana de hoje. Abertamente parcial (Mograbi é claramente contra a ocupação dos territórios palestinianos por Israel), Mograbi joga, através de um habilidoso jogo de montagem, com os discursos israelitas de glorificação desses mitos do judaísmo, cruzando-os com momentos do dia-a-dia da ocupação israelita, e consegue criar nos espectadores (quase apetece falar numa manipulação semiótica desse discurso, mas não sei até ponto isto não será um termo inventado por mim neste preciso momento, confesso que os meus conhecimentos na matéria são pouco mais que nulos) uma segunda leitura desse discurso (é impossível estar a ouvir os alunos israelitas, numa sala de aula e sob aprovação da sua professora, a glorificar o martírio de Sansão, que sacrificou a sua vida para matar os inimigos do seu povo, e não o associar automaticamente à acção dos bombistas-suicidas palestinianos).
O cinema documental pode abrir horizontes, mostrar-nos algo que nunca vimos, outros lugares, outras culturas, outras realidades. Mas também pode dar origem a novas visões sobre aquilo que já conhecemos. E este documentário consegue fazer isso.
Novos horizontes era também o que se pedia fora da Culturgest, mas a verdade é que insistiam em não surgir. Continuava a espera, então.
A Perca do Nilo, um peixe de grandes dimensões (e com muita carne) que se pode encontrar no Lago Vitória, é a maior exportação da Tanzânia para a União Europeia. Todo o negócio à volta dela, na pesca, na indústria transformadora, na sua exportação, criou milhares de postos de trabalho, um verdadeiro oásis numa região tão pobre do mundo como é a região dos Grandes Lagos, na África Oriental.
A Perca do Nilo, que é um peixe carnívoro, até meados dos anos 60 não existia no Lago Vitória. Foi lá colocada pelo homem, no âmbito de uma "experiência cientifica" desenvolvida por um qualquer colono da altura. Desenvolveu-se muito bem naquele ambiente, alimentando-se das outras centenas de espécies de peixes que habitavam o lago e que hoje se encontram extintas. Espécies que não tinham o mesmo potencial económico mas que alimentavam a população local e eram vitais para a manutenção do equilíbrio ecológico do Lago, que neste momento está a morrer.
Das Percas do Nilo pescadas no Lago Vitória só as cabeças e as espinhas são consumidas pelas populações locais. Tudo o resto é exportado para o 1º Mundo (Todos os dias 2 milhões de brancos comem uma perca pescada no Lago Vitória. Eu hoje ao almoço comi perca grelhada.). O peixe pescado no Lago Vitoria tornou-se um bem demasiado caro para aqueles que o pescam.
O documentário "Darwin's Nightmare" de Hubert Sauper é sobre isto tudo. Sobre as teias que esta indústria tece, sobre as suas relações com a comunidade que a acolhe, sobre as pessoas que dela vivem, dos pescadores aos donos das indústrias transformadoras, dos pilotos que vêm da Europa para buscar o peixe às prostituas que os entretêm enquanto lá estão à espera.
Tenta também ser um documentário sobre África e os problemas que o afligem, a miséria, a fome, a SIDA, a guerra e o tráfico de armas. Mas é, acima de tudo, um documentário sobre a complexidade da globalização, que, tal como a Perca do Nilo, ao mesmo tempo origina riqueza para uma região e lhe destrói a sua fonte de riqueza, cria emprego para as populações locais e interdita-lhes o acesso ao alimento que o Lago desde sempre lhes proporcionou.
É uma obra bem conseguida, principalmente na forma como vai expondo todas estas realidades contraditórias sem nunca impor, pelo menos de uma forma ostensiva ou panfletária, uma qualquer mensagem predeterminada, mostrando as realidades que filma com a complexidade que de facto têm, não reduzindo tudo a uma simples denúncia dos malefícios da globalização.
Mas o DocLisboa já havia começado antes, com "Rize" de David LaChapelle, documentário sobre um novo estilo de dança, o "krumping" (e o seu antecessor o "clowning"), surgidos nos ghettos de LA e que se apresentam, mais do que como uma simples dança, como um novo movimento de cultura urbana, que é inclusive utilizado como uma arma contra a cultura dos gangs (como diz a mãe de um praticante "Prefiro que o meu filho seja um clown do que membro de um gang").
Excelente enquanto documento de um movimento ainda em fase de criação ("Se estás um dia sem praticar ficas completamente fora, quando voltas os passos já são outros" diz alguém durante o documentário), não tão bom quando daí sai e tenta um retrato mais abrangente da comunidade urbana onde este movimento se desenvolve.
Depois seguiu-se "Liberia: an Uncivil War" de Jonhathan Stack. Projecto basicamente jornalístico, segue os acontecimentos da última guerra civil na Libéria, em 2003, e mais concretamente a tentativa das tropas rebeldes em invadir a capital, Monrovia, cruzando as imagens dessa batalha (e dos momentos que a antecedem) com uma análise da evolução histórica do país e da sua relação com os Estados Unidos. O seu particular interesse surge do facto deste documentário ser co-realizado por outro jornalista, que estava nesse mesmo período a acompanhar (e a filmar) o avanço das tropas rebeldes, permitindo assim a visão do outro lado, visão que se torna especialmente relevante pois, durante o conflito, (e como normalmente acontece em conflitos deste género), as únicas imagens que saíram para o exterior vieram de jornalistas que cobriam o conflito a partir da capital.
Uma grande reportagem sobre um conflito que ocupou os media internacionais há 2 anos atrás e que entretanto caiu no esquecimento e com o extra de permitir espreitar para o interior de um movimento de guerrilha em acção.
O primeiro dia acabou com "Massaker" de M. Borgmann, L. Slim e H. Theissen, documento fortíssimo sobre o massacre ocorrido nos campos de refugiados (palestinianos) de Sabra e Chatila, perpetrado pelas milícias cristãs (com apoio do exército israelita), durante a guerra civil do Líbano.
Assente exclusivamente sobre as declarações dos próprios executantes do massacre, este documentário não mostra nada dos acontecimentos propriamente ditos (não existem imagens de arquivo, só são mostradas algumas fotos pelo próprios depoentes, apresentadas por eles no decorrer da sua narrativa), o que de facto vemos durante todo o filme são os corpos dos depoentes, (os rostos ficam sempre na sombra), enquanto narram os acontecimentos. E o que fica deste documentário é precisamente isso, a narração de um massacre. Num tom informal, contam como se preparam para a matança, como a planearam, como mataram (um deles conta como em vez de disparar sobre as suas vítimas, esfaqueava-as, porque com um tiro só se morre uma vez, com uma faca morre-se duas, três, quatro vezes). E mais do que os horrores descritos, o que assusta principalmente é a banalidade como o massacre é descrito pelo seus executantes.
Um documentário impressionante, por isto tudo mas também pela forma como é construído, de como consegue criar um efeito de choque no espectador sem recorrer a imagens, utilizando a banda sonora, a iluminação, os cenários (quartos vazios, escuros, decrépitos, especialmente preparados para as filmagens) como suporte da narração e através deles criando um ambiente verdadeiramente opressivo. Se não deixa de ser verdade que "uma imagem vale 1000 palavras", a verdade é que o que este documentário consegue mostrar vai muito além do que qualquer imagem do massacre conseguiria.
Abordagem completamente diferente tem "Srebrenica: A Cry From the Grave" de Leslie Woodhead. Debruçando-se sobre outro massacre perpetrado sobre uma população civil, neste caso pelas tropas bósnias-sérvias sobre a população muçulmana na cidade de Srebrenica em 1995, este documentário assenta nas imagens do massacre captadas por diferentes fontes (como é dito no documentário: "Srebrenica foi um massacre gravado em Camcorder"), permitindo fazer quase um acompanhamento da evolução do massacre minuto a minuto. Assente num estrutura jornalística, impõe-se de facto pela força das imagens. Igualmente impressionante.
Seguiu-se "The Shape of the Moon" de Leonard Helmrich, documentário que acompanha a vida de uma família indonésia dos bairros de lata de Jakarta e a mudança da sua matriarca para a sua aldeia natal, mostrando-nos uma série de episódios vividos pelos seus membros, com especial destaque para a mãe e o filho mais novo (imaginem um daqueles pintas dos Anjos, mas indonésio). O forte deste documentário é precisamente as suas personagens, mas o filme nunca consegue fazer ultrapassar a sensação de que nos está unicamente a mostrar uma série de situações e personagens exóticas. Ainda assim interessante e bastante divertido.
Depois, bem, depois vieram mais 90 minutos de miséria, um golo sofrido, nenhum marcado, assobios e lenços brancos e o que se adivinhava (e veio a confirmar-se) ser o opus final de um homem que até era boa pessoa mas não dava conta do recado.